05 julho 2021

A propósito de metáforas (4)

Era Novembro e o som da chuva inundava o escritório mas não o tornava frio porque a lareira estava acesa. No ar pairava o cheiro a madeira de pinho e de resina a arder.

Filó bebia um copo de vinho a pequenos goles enquanto afagava o gato. O crepitar da madeira confundia-se com o ronronar do gato que ora pelo calor do fogo ora pelas festas na barriga se deleitava estendido no sofá.

Filó estava absorta em seus pensamentos que nem dava conta das diferentes formas que as labaredas assumiam. Sentia o calor na cara mas já não sabia se era da lareira ou o vinho que provocava a sensação.

Na escrivaninha pequenos papeis espalhados e em cima da mesa um maço de cartas atado com uma fita de seda, um charuto por terminar e uma bonita caixa de madeira finamente talhada de onde saía um pedaço de tecido.

A primeira pista veio das mãos do advogado da família, um pequeno bilhetinho e a chave da escrivaninha. Nos primeiros dias a dor da perda não a deixou entrar no “jogo” mas no final a missa de 7.º dia achou melhor pôr os neurónios a funcionar e decifrar aquele que viria a ser o início de um grande jogo.

Desde pequena que era hábito o pai desafiá-la com este tipo de coisas, uma espécie de caça ao tesouro com várias pistas e enigmas que tinha que desvendar. Assim aprendia sem se dar conta e a sua imaginação era espevitada e treinada.

Nesse pequeno papel, onde logo reconheceu a bonita e familiar caligrafia do pai, apenas uma palavra: “Malageña”. Quanto lhe era familiar aquela palavra, era assim que o pai carinhosamente tratava a mãe desde os tempos em que lá pelas Américas ele apenas um europeu “viajero” se enamorou da filha do velho e rico rancheiro “El Señor Calderón”.

Logo entendeu que “Malageña” era o disco que estava no gira-discos e que dentro da sua caixa mais um papel e nova pista. Agora duas palavras “Família Calderón” que dali a dias lhe remeteram ao livro de família que estava na estante entre tantos outros livros.

Assim foi por alguns meses em que as pistas eram cada vez mais difíceis de achar e os seus enigmas mais intrincados de decifrar.

Agora uma pista com uma representação de um brasão onde se via uma águia em cima de um cacto com uma serpente no bico. Essa conhecia bem e só podia ser a bandeira do país natal que a mãe guardava religiosamente no quarto. Estava certa, até foi fácil desta vez, - pensou. Mas aí aquela que veio a ser a última pista, novo bilhetinho na bandeira dizia: “O coração do cubano tem fechadura.”

“Que diabo queria dizer com isto” – pensava.

Muito ruminou o assunto até entender que o cubano era o charuto que estava solitário na caixa de madeira. Pegou nele e observou-o de todos os ângulos até que resolveu acendê-lo, não que o fosse fumar mas não sabia mais que lhe fazer e foi aí que descobriu uma pequena chave com a qual abriu uma fechadura que estava escondida num fundo falso da caixa. Lá o pequeno maço de cartas e bilhetes de amor, trocadas décadas antes entre os pais, atadas com uma fita de seda e um pequeno embrulho de tecido. Abriu-o delicadamente e lá dentro um bonito e brilhante diamante e um novo bilhetinho.

Novamente uma caligrafia familiar mas desta vez da mãe dizia-lhe:

“ O amor e a amizade são como um diamante. Aos olhos de uns uma relíquia que se preza mas aos de outros apenas um pedaço de pedra com o mesmo valor que as da calçada.”


10 junho 2021

A propósito de metáforas (3)

Era dia de Páscoa. Como todos os anos, os adultos da família tinham estado a organizar uma caça aos ovos de chocolate. Como todos os anos, esta caça aos ovos acontecia no jardim da casa da tia Emília.

 

A Tia Emília era uma senhora a quem já ninguém sabia a idade, e que vivia numa espécie de palacete no meio da serra.

 

Era um palacete que intrigava os mais novos. Parecia estático no tempo, mas havia qualquer coisa de muito estranho…. Embora parecesse tudo igual, havia sempre qualquer coisa de diferente, mas que eles não conseguiam dizer bem o que era. Como que se por magia, todos os anos, quando lá iam, as coisas, embora fossem todas as mesmas, tivessem mudado de lugar, e tivessem de redescobrir e reaprender aquele lugar.

 

Tal como todos os anos, a Tia Emília anunciou que havia um ovo especial, diferente de todos os outros e que estava muito bem escondido. Nos últimos anos ninguém o tinha encontrado…

 

Tinha sido dado início à tão ansiada caça aos ovos de chocolate!

 

Que conteria aquele ovo de que, todos os anos, falava a Tia Emília? Teria de ser, de facto diferente…. Tinha de valer a pena encontra-lo! Onde o teria ela escondido?

 

A miudagem começou freneticamente a percorrer todos os canteiros do jardim, subiram a cada uma das árvores. Volta e meia ouvia-se um deles gritar bem alto: “encontrei! Encontrei mais um!”

 

A Ana também encontrou alguns que foi, ora comendo, ora guardando na sua pequena cesta. Tal como os outros, também ela anunciava ter encontrado mais um… mas nunca o fazia da forma entusiástica dos seus irmãos ou dos primos.

 

No seu íntimo, Ana achava que tal celebração só teria lugar quando encontrasse “O Ovo”! Mas onde estaria aquele ovo? Como seria? O que conteria? Como é que o conseguiria distinguir dos outros? Afinal eram todos ovos de chocolate… sem nada que os distinguisse assim tanto entre si…

 

Gostaria tanto de descobri-lo… mas de certeza seria um dos outros a fazê-lo… Eles eram tão mais destemidos, originais, decididos do que ela…

 

Perdida no labirinto dos seus pensamentos, e já sem grandes preocupações em encontrar ovos de chocolate, a Ana começou a vaguear pelos jardins do palacete da Tia Emília.

 

Eram jardins muito bem cuidados. E este foi um pensamento que assaltou a pequena Ana. De repente, em vez de andar à procura de ovos de chocolate, a Ana começou a apreciar cada uma das diferentes flores que ia encontrando. Existiam tantas flores diferentes das que lá estavam no ano anterior…

 

Quase sem dar por isso, entrou no labirinto de arbustos localizado bem no centro do jardim. O labirinto foi-se adensando e os caminhos foram-se tornando mais estreitos. De repente foi assolada pelo medo. Estava sozinha e as últimas vezes que lá tinha estado tinha estado sempre acompanhada! Como ia conseguir sair dali?

 

Ana recorreu à sua memória e percorreu todos os caminhos de que se recordava, sem nunca encontrar a saída!

 

Lembram-se do início da história? Estes jardins tinham um quê de mágico! As coisas, sendo sempre as mesmas, mudavam de aparência todos os anos sem que ninguém conseguisse dizer exatamente o quê ou de que forma…

 

Assustada, Ana pensou em gritar para pedir ajuda, mas pensou no que diriam e fariam os outros… De certeza que iam gozá-la por se ter perdido num jardim que conhece e frequenta há anos! Decidiu respirar fundo, muito fundo até encontrar a tranquilidade que lhe permitisse pensar em como sair dali. Nunca iria passar a vergonha de se ter perdido no Jardim da Tia Emília!

 

Agora estava mais calma. Começou a percorrer o labirinto. Agora decidira ir pelos caminhos que nunca tinha experimentado. E descobriu tantas coisas novas!

 

Aqueles eram, de facto jardins bem cuidados. Cada um dos percursos era afinal tão diferente… Nunca tinha reparado que cada um deles estava construído com arbustos subtilmente distintos entre si!

 

E eis que, depois de se ter permitido deslumbrar a cada nova descoberta, a cada novo percurso Ana estava bem no centro do labirinto e do Jardim da Tia Emília! E foi aqui que foi verdadeiramente surpreendida e gritou: “Encontrei O Ovo da tia Emília!”

 

Era um ovo gigante esculpido a partir de um arbusto muito particular… O Jardineiro da Tia Emília tinha de ser muito engenhoso… Aquele arbusto tinha sido, de certeza, enxertado! Só não sabia quantas vezes, tamanho era o número de flores de cores e formas distintas.

08 junho 2021

Metáforas aos olhos de um miúdo...

 
Ontem, ao final do dia, estava cansada, mas tão cheia de coisas boas! Coisas tão boas com origem neste exercício de criação de metáforas que me apeteceu logo partilhá-las com quem e para quem as tinha feito! Mas faltou-me a energia…
 
Hoje, quando acordei, essa boa energia continuava cá. Reli-nos. Revi mentalmente os momentos que depois aconteceram cá por casa. E aqui vai a partilha!
 
Andamos cá por casa numa espécie de campeonato de jogos de tabuleiro. O Tiago anda numa maré de ganhar ao Pedro quase que sistematicamente e desafiou-me para jogar com ele. Tinha já feito a metáfora da Ana, mas andava às voltas com a da Maria e disse-lhe: “deixa-me terminar primeiro este meu TPC”.

– Isso até tem graça! Costumas ter muitos TPCs, mãe? – perguntou o Tiago.

    
Estava tão divertida e satisfeita com o que tinha feito para a Ana que lhe disse que depois o partilharia com ele. E partilhei. Comecei por lhe perguntar se ele sabia o que era uma metáfora.
 

– Já não me lembro muito bem, mas acho que é tipo (lá está o “tipo”) uma comparação….

– Sim, na gramática de português, é uma espécie de comparação. Mas nisto que a mãe está a fazer (e ele tem uma noção geral do que é este curso da PNL e do intuito com que o estou a fazer), uma metáfora é uma espécie de uma comparação, sim, mas que é usada com o objetivo de te ajudares ou ajudares alguém a encontrar uma resposta a uma situação incomodativa ou que não se está a conseguir resolver.

– Tipo, como no outro dia quando me tentaram roubar a bicicleta e tu me contaste uma história de quando eras pequena?

 
Perante esta resposta “enchi”! E enchi mais ainda depois de lhe ter lido as metáforas que construí para as duas.
 
À tua Maria, reagiu com um sorriso malandro e diz-me:
 

– Oh mãe! Isso pareces mesmo tu! Por exemplo, quando eu deixo as minhas coisas do lanche em cima da mesa e tu avisas-me assim, como quem não quer a coisa, bem-disposta. Depois dás-me outro aviso por qualquer coisa que eu não tenha feito bem. E vais-me dando avisos, a mim e ao pai… e depois chegas à hora de jantar e já nos avisas muito maldisposta! 😊

 
À tua Ana, reagiu de uma forma tão inesperada… (Quando nos permitimos a isso, os miúdos surpreendem-nos a toda a hora!)
 
Li-lhe a tua metáfora e mais do que um comentário à mesma, conseguiu estabelecer uma ligação fora do teu contexto, de uma forma tão clara, completamente “on-target” e que a mim me tinha escapado totalmente…. 

– Está gira essa estória! Percebe-se bem! Mas sabes de quem é que parece que estás a falar? Da Matilde! (a minha sobrinha, da idade dele) Essa miúda é tão igual à Matilde! – E não é que é?

A Matilde está a passar uma fase em que a situação que queres resolver, Ana, está muito presente. Obviamente por questões distintas, mas está, de facto, a passar por aquele turbilhão de emoções tão típico da adolescência, e o seu comportamento mais comum, neste momento, é o de explosão com tudo e com todos, muitas vezes sem razão aparente.
 
Fiquei tão orgulhosa dele!
 
Obrigada meninas!

A propósito de metáforas (2)

 
Maria tinha um evento especial.
 
Não daqueles que estão marcados no calendário pra celebrar datas especificas. Era um evento pelo qual ansiava há algum tempo.
 
No armário tinha aqueles sapatos pelos quais se tinha apaixonado e aos quais não tinha resistido. Eram lindos na sua diferença. Eram a sua “cara”.
 
Com eles calçados, viu-se linda, maravilhosa, plena… mas não podia ir só de sapatos!!! Ou talvez pudesse… Quem sabe? 😊
 
Imaginou usá-los com um vestido curto, mas agora achava que talvez não fosse a melhor opção. Os sapatos, embora simples e discretos, tinham de ser “a jóia” de tão únicos que eram. Queria que brilhassem.
 
Procurou outras alternativas ao vestido curto que imaginara. Encontrou algumas opções, mas agora estava indecisa.
 
Joana, a sua amiga de sempre em quem confiava cegamente, foi chamada a opinar.
 
Joana era uma mulher segura, muito certa de si, que transpirava beleza por todos os poros, e que tinha um extremo bom gosto. Joana era uma referência.
 
Aos olhos de Joana tinha saltado um vestido comprido, leve e fluído de um azul invulgar que dizia com os olhos de Maria. Ficaria linda!
 
Insegura da decisão, Maria teve um dejá vu
 
Tinha-lhe acontecido qualquer coisa semelhante no seu baile de finalistas, pensou. Apesar de aos olhos dos outros estar simplesmente deslumbrante, como nunca a tinham visto antes, Maria não se tinha sentido na sua pele naquela noite…
 
Agradecendo imenso a Joana, decidiu levar um simples, discreto e curto vestido preto que faria brilhar os sapatos pelos quais se tinha apaixonado e que queria mostrar ao mundo.

A propósito de metáforas (1)


Já não escrevia há tanto tempo... E foi tão giro e gratificante voltar a brincar com as palavras!

 
Ela era uma miúda gira. Discreta. Calada. Raramente se expunha. Raramente partilhava.
 
O sorriso tímido que, por vezes, despontava no seu rosto como reação a qualquer coisa que a emocionava ou divertia, fazia antever um mundo que quase todos desconheciam e que, embora interdito, ansiavam por desvendar.
 
Era um mundo por vezes estranho. Um mundo que alternava entre uma luz muito própria, positiva e intensa, e um turbilhão de emoções, dúvidas, dores que ela guardava apenas para si, e que teimosamente não desvaneciam – tal qual erva daninha que invade um jardim e tudo o que o circunda.
 
Essa miúda vivia numa casa sem espelhos.
 
A imagem que tinha de si própria era apenas aquela que foi construindo com o passar dos anos. O que se dizia a si mesma é que era mais uma miúda igual a tantas outras. O que ela aprendeu através dos outros é que nem sempre é bom sermos diferentes. Talvez por isso se resguardasse…
 
Certo dia, em passeio com a irmã, descobriu uma casa repleta de espelhos. Nenhuma das duas meninas tinha alguma vez visto a sua própria imagem refletida.
 
Cada um dos espelhos, que forravam integralmente as paredes daquela casa, funcionava com distorção.
 
A miúda ficou espantada com a quantidade de gente que habitava aquela casa... O estranho é que todas aquelas pessoas a olhavam diretamente nos olhos e eram curiosamente parecidas entre si.
 
Sorriu a uma miúda que lhe pareceu simpática.
 
Gritou a uma miúda com quem se assustou de tão grande e grotesca que era.
 
Chorou de susto de uma miúda muito feia, tal qual bruxa dos contos de horror dos livros de histórias.
 
Riu, como se não houvesse amanhã, com uma outra que tinha um ar cómico e divertido…
 
Eram tantas as emoções que a assaltavam que tudo aquilo parecia um sonho bizarro do qual queria acordar.
 
E acordou! Acordou para um sonho ainda mais bizarro, quando choca, costas com costas, com a sua irmã e, de repente, o número de pessoas que habitava aquela casa duplicou… e explodiram as duas num riso nervoso, misturado com lágrimas de susto e um desconfortável conforto de terem ali alguém que conheciam e de quem gostavam.
 
Sentaram-se no chão e com calma observaram o que as rodeava. Todas aquelas miúdas estavam vestidas como elas. E, de súbito, reconheceram as mil e uma versões de si próprias… As mil e uma versões da outra…
 
De súbito, reconheceram, a par das suas diferenças, as suas proximidades…
 
Os seus medos, as suas angústias, as suas dores, tendo certamente origens distintas, eram, afinal, emoções que lhes eram comuns.
 
Os seus jardins, agora cuidados a quatro mãos, estavam mais bonitos. E as ervas que os contaminavam deixaram de crescer e de se disseminar entre si com o mesmo fulgor.”