Tudo é um jogo, brincriável. Há o bomem, isso é facto. Custa é haver o humano. A vida descostura, o homem passa a linha, a corrigir os panos do tempo. Mimirosa, a menina, nada sabia desses acertos. Acreditava ser tudo simples como o molhado e água, poeira e chão. E assim, tudo em tamanho não aparado: os senhores em infância, as coisas sem consequência.
Seus pais se preocupavam. Passava a idade e Mimirosa demorava a aprender o regime da realidade. Que há deveres, e as contas do ter e do haver. E o ser é apenas o que resta. Noves fora, novos de fora.
Quem estragava esse madurecimento da miúda era sua avó, Ermelinda. A senhora se convertera em parceira de infância, ancorada em irresponsabilidade. Em meia palavra: era companhia de se evitar. Os pais de Mimirosa assim julgavam. A menina devia era evitar os risos, disciplinar arrebatamentos. A escola, em primeiro lugar. A avó, sabia-se, desprezava a escola. Que se aprende mais é fora dela, no calor da família, em redondezas de carinho. Mimirosa estava, por isso, proibida de frequentar a companhia de Ermelinda. Não queriam nem que fosse vista junto, perto do caminho da avó. A menina era conduzida, de mão acompanhada, até às imediações escolares, onde já não poderia desviar a direcção. Imaginava-se. Porque ela, mal se soltava das vistas, se internava no atalhozito que dava na casa da avó. Ali gazetava dos deveres, entretida nos nenhuns afazeres da velha senhora. Conforme os olhos distraídos da velha ela ajudava, rectificando um aqui no além ela. Até que, inevitável, chegava o jogo da adivinhação.
- Qual é um rio que não tem senão uma margem?
- Isso é coisa que não pode, avó! E do outro lado fica o quê?
- Pense, se ensine. Já sabe que o prémio que há-de haver...
Prémio que haveria era só o serem as duas, ali, no escondido. A velha deixava o mistério durar, pairada, parada. A pergunta labirintava na cabeça de Mimirosa. Podia um rio assim? Ou já se viu a estrada correr sem o amparo de duas ambas bermas?
- Mas há o prémio de verdade?
- Se você‚ adivinhar esse mistério, o mundo vai ficar tão admirado que até o tempo há-de parar.
- Jure, avozinha?, berlindavam-se os olhos dela.
E voltavam às lides, sem obrigação de nada. O jardim da casa parecia obra de inventar. Uma só arbustozinho nele cabia.
- Vês a sombra? Essa sombra é pequena. Mas existe uma sombra que é da terra toda inteira.
Voltada a casa, a menina era inquirida pelos pais, perguntas sem mistério, coisas de calcular o futuro: quando fores grande já escolheste o que vais ser? Simplesmente, ela não sabia querer ser grande. E, assim, sua ausência na resposta.
- Ela vai ser doutora hospitalar, vaticinava a mãe.
- Ou dessas que faz as contas e faz crescer dinheiro, preferia o pai.
- Tudo serás filha, mas não queremos que sejas como nós.
A menina se admirava: aqueles não gostavam de si mesmos? Por que razão eles queriam que ela lhes fosse diferente? Só a avó gostava de ser como era, cuidadosamente desarrumadinha. Como deviam ser infelizes, aqueles dois, seus pais.
Até que, uma tarde, veio o alvoroço. A velha Ermelinda se sentira mal, o peito dela se amarrotara. Mimirosa, nesses dias, deixou a escola. Mas não a deixaram entrar na velha casinha. A senhora não reconhecia ninguém, ela se convertera em fundo escuro. Nenhuma luz a trazia à superfície de si mesma. E, assim, somaram-se os dias. Mimirosa, obrigada e vigiada, voltou escola. A sombra do morcego se desenha no tecto? Pois o pensamento da neta n o saía do mesmo assunto: saudade de sua avó.
Um dia, enquanto seu olhar fingia percorrer o caderninho, a menina suspulou da carteira e se flechou porta afora. Escapou da escola e correu pelos campos. Ninguém a viu penetrar na penumbra da casa, ninguém suspeitava que se anichara, ofegante, na cabeceira da moribunda avó.
- Avó, sei a adivinha!
No rosto da senhora nenhum sinal, nem uma ruga se alterou. Parecia que Ermelinda já cruzara aquele risco feito na água, fronteira entre a vida e a morte.
- Lembra a adivinha, vó? Aquela do rio de um lado só?
E os olhos da menina se atabalhoaram de água, sentida sozinha no grande mundo. A mão dela ainda arriscou tocar no braço da avó. Mas teve medo. E se cborou! O caderninho órfão, em suas mãos, sofria a catarata das lágrimas. Até que os braços do pai a puxaram. Primeiro ela cedeu. Mas depois esgueirou-se, por um instante, e depositou o caderninho escolar no leito da água. Estava aberto numa figurinha do oceano, mais suas criaturas profundas. E a voz da menina tombada com um derradeiro lenço:
- É o mar, avó. Esse cujo rio; é o mar.
Já se retiravam daquele luto, todos mais Mimirosa quando os dedos da avó tactearam o ar e, cegos, chegaram até no caderno. Depois, acariciaram o azul da imagem. E caderno começou a pingar, como se o papel não mais contivesse aquela água.
Seus pais se preocupavam. Passava a idade e Mimirosa demorava a aprender o regime da realidade. Que há deveres, e as contas do ter e do haver. E o ser é apenas o que resta. Noves fora, novos de fora.
Quem estragava esse madurecimento da miúda era sua avó, Ermelinda. A senhora se convertera em parceira de infância, ancorada em irresponsabilidade. Em meia palavra: era companhia de se evitar. Os pais de Mimirosa assim julgavam. A menina devia era evitar os risos, disciplinar arrebatamentos. A escola, em primeiro lugar. A avó, sabia-se, desprezava a escola. Que se aprende mais é fora dela, no calor da família, em redondezas de carinho. Mimirosa estava, por isso, proibida de frequentar a companhia de Ermelinda. Não queriam nem que fosse vista junto, perto do caminho da avó. A menina era conduzida, de mão acompanhada, até às imediações escolares, onde já não poderia desviar a direcção. Imaginava-se. Porque ela, mal se soltava das vistas, se internava no atalhozito que dava na casa da avó. Ali gazetava dos deveres, entretida nos nenhuns afazeres da velha senhora. Conforme os olhos distraídos da velha ela ajudava, rectificando um aqui no além ela. Até que, inevitável, chegava o jogo da adivinhação.
- Qual é um rio que não tem senão uma margem?
- Isso é coisa que não pode, avó! E do outro lado fica o quê?
- Pense, se ensine. Já sabe que o prémio que há-de haver...
Prémio que haveria era só o serem as duas, ali, no escondido. A velha deixava o mistério durar, pairada, parada. A pergunta labirintava na cabeça de Mimirosa. Podia um rio assim? Ou já se viu a estrada correr sem o amparo de duas ambas bermas?
- Mas há o prémio de verdade?
- Se você‚ adivinhar esse mistério, o mundo vai ficar tão admirado que até o tempo há-de parar.
- Jure, avozinha?, berlindavam-se os olhos dela.
E voltavam às lides, sem obrigação de nada. O jardim da casa parecia obra de inventar. Uma só arbustozinho nele cabia.
- Vês a sombra? Essa sombra é pequena. Mas existe uma sombra que é da terra toda inteira.
Voltada a casa, a menina era inquirida pelos pais, perguntas sem mistério, coisas de calcular o futuro: quando fores grande já escolheste o que vais ser? Simplesmente, ela não sabia querer ser grande. E, assim, sua ausência na resposta.
- Ela vai ser doutora hospitalar, vaticinava a mãe.
- Ou dessas que faz as contas e faz crescer dinheiro, preferia o pai.
- Tudo serás filha, mas não queremos que sejas como nós.
A menina se admirava: aqueles não gostavam de si mesmos? Por que razão eles queriam que ela lhes fosse diferente? Só a avó gostava de ser como era, cuidadosamente desarrumadinha. Como deviam ser infelizes, aqueles dois, seus pais.
Até que, uma tarde, veio o alvoroço. A velha Ermelinda se sentira mal, o peito dela se amarrotara. Mimirosa, nesses dias, deixou a escola. Mas não a deixaram entrar na velha casinha. A senhora não reconhecia ninguém, ela se convertera em fundo escuro. Nenhuma luz a trazia à superfície de si mesma. E, assim, somaram-se os dias. Mimirosa, obrigada e vigiada, voltou escola. A sombra do morcego se desenha no tecto? Pois o pensamento da neta n o saía do mesmo assunto: saudade de sua avó.
Um dia, enquanto seu olhar fingia percorrer o caderninho, a menina suspulou da carteira e se flechou porta afora. Escapou da escola e correu pelos campos. Ninguém a viu penetrar na penumbra da casa, ninguém suspeitava que se anichara, ofegante, na cabeceira da moribunda avó.
- Avó, sei a adivinha!
No rosto da senhora nenhum sinal, nem uma ruga se alterou. Parecia que Ermelinda já cruzara aquele risco feito na água, fronteira entre a vida e a morte.
- Lembra a adivinha, vó? Aquela do rio de um lado só?
E os olhos da menina se atabalhoaram de água, sentida sozinha no grande mundo. A mão dela ainda arriscou tocar no braço da avó. Mas teve medo. E se cborou! O caderninho órfão, em suas mãos, sofria a catarata das lágrimas. Até que os braços do pai a puxaram. Primeiro ela cedeu. Mas depois esgueirou-se, por um instante, e depositou o caderninho escolar no leito da água. Estava aberto numa figurinha do oceano, mais suas criaturas profundas. E a voz da menina tombada com um derradeiro lenço:
- É o mar, avó. Esse cujo rio; é o mar.
Já se retiravam daquele luto, todos mais Mimirosa quando os dedos da avó tactearam o ar e, cegos, chegaram até no caderno. Depois, acariciaram o azul da imagem. E caderno começou a pingar, como se o papel não mais contivesse aquela água.
1 comentário:
Oi! Gostaria de saber de qual livro é este conto, interessantíssimo, de Mia Couto. Você sabe me dizer?! Obrigada.
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