05 julho 2021

A propósito de metáforas (4)

Era Novembro e o som da chuva inundava o escritório mas não o tornava frio porque a lareira estava acesa. No ar pairava o cheiro a madeira de pinho e de resina a arder.

Filó bebia um copo de vinho a pequenos goles enquanto afagava o gato. O crepitar da madeira confundia-se com o ronronar do gato que ora pelo calor do fogo ora pelas festas na barriga se deleitava estendido no sofá.

Filó estava absorta em seus pensamentos que nem dava conta das diferentes formas que as labaredas assumiam. Sentia o calor na cara mas já não sabia se era da lareira ou o vinho que provocava a sensação.

Na escrivaninha pequenos papeis espalhados e em cima da mesa um maço de cartas atado com uma fita de seda, um charuto por terminar e uma bonita caixa de madeira finamente talhada de onde saía um pedaço de tecido.

A primeira pista veio das mãos do advogado da família, um pequeno bilhetinho e a chave da escrivaninha. Nos primeiros dias a dor da perda não a deixou entrar no “jogo” mas no final a missa de 7.º dia achou melhor pôr os neurónios a funcionar e decifrar aquele que viria a ser o início de um grande jogo.

Desde pequena que era hábito o pai desafiá-la com este tipo de coisas, uma espécie de caça ao tesouro com várias pistas e enigmas que tinha que desvendar. Assim aprendia sem se dar conta e a sua imaginação era espevitada e treinada.

Nesse pequeno papel, onde logo reconheceu a bonita e familiar caligrafia do pai, apenas uma palavra: “Malageña”. Quanto lhe era familiar aquela palavra, era assim que o pai carinhosamente tratava a mãe desde os tempos em que lá pelas Américas ele apenas um europeu “viajero” se enamorou da filha do velho e rico rancheiro “El Señor Calderón”.

Logo entendeu que “Malageña” era o disco que estava no gira-discos e que dentro da sua caixa mais um papel e nova pista. Agora duas palavras “Família Calderón” que dali a dias lhe remeteram ao livro de família que estava na estante entre tantos outros livros.

Assim foi por alguns meses em que as pistas eram cada vez mais difíceis de achar e os seus enigmas mais intrincados de decifrar.

Agora uma pista com uma representação de um brasão onde se via uma águia em cima de um cacto com uma serpente no bico. Essa conhecia bem e só podia ser a bandeira do país natal que a mãe guardava religiosamente no quarto. Estava certa, até foi fácil desta vez, - pensou. Mas aí aquela que veio a ser a última pista, novo bilhetinho na bandeira dizia: “O coração do cubano tem fechadura.”

“Que diabo queria dizer com isto” – pensava.

Muito ruminou o assunto até entender que o cubano era o charuto que estava solitário na caixa de madeira. Pegou nele e observou-o de todos os ângulos até que resolveu acendê-lo, não que o fosse fumar mas não sabia mais que lhe fazer e foi aí que descobriu uma pequena chave com a qual abriu uma fechadura que estava escondida num fundo falso da caixa. Lá o pequeno maço de cartas e bilhetes de amor, trocadas décadas antes entre os pais, atadas com uma fita de seda e um pequeno embrulho de tecido. Abriu-o delicadamente e lá dentro um bonito e brilhante diamante e um novo bilhetinho.

Novamente uma caligrafia familiar mas desta vez da mãe dizia-lhe:

“ O amor e a amizade são como um diamante. Aos olhos de uns uma relíquia que se preza mas aos de outros apenas um pedaço de pedra com o mesmo valor que as da calçada.”


10 junho 2021

A propósito de metáforas (3)

Era dia de Páscoa. Como todos os anos, os adultos da família tinham estado a organizar uma caça aos ovos de chocolate. Como todos os anos, esta caça aos ovos acontecia no jardim da casa da tia Emília.

 

A Tia Emília era uma senhora a quem já ninguém sabia a idade, e que vivia numa espécie de palacete no meio da serra.

 

Era um palacete que intrigava os mais novos. Parecia estático no tempo, mas havia qualquer coisa de muito estranho…. Embora parecesse tudo igual, havia sempre qualquer coisa de diferente, mas que eles não conseguiam dizer bem o que era. Como que se por magia, todos os anos, quando lá iam, as coisas, embora fossem todas as mesmas, tivessem mudado de lugar, e tivessem de redescobrir e reaprender aquele lugar.

 

Tal como todos os anos, a Tia Emília anunciou que havia um ovo especial, diferente de todos os outros e que estava muito bem escondido. Nos últimos anos ninguém o tinha encontrado…

 

Tinha sido dado início à tão ansiada caça aos ovos de chocolate!

 

Que conteria aquele ovo de que, todos os anos, falava a Tia Emília? Teria de ser, de facto diferente…. Tinha de valer a pena encontra-lo! Onde o teria ela escondido?

 

A miudagem começou freneticamente a percorrer todos os canteiros do jardim, subiram a cada uma das árvores. Volta e meia ouvia-se um deles gritar bem alto: “encontrei! Encontrei mais um!”

 

A Ana também encontrou alguns que foi, ora comendo, ora guardando na sua pequena cesta. Tal como os outros, também ela anunciava ter encontrado mais um… mas nunca o fazia da forma entusiástica dos seus irmãos ou dos primos.

 

No seu íntimo, Ana achava que tal celebração só teria lugar quando encontrasse “O Ovo”! Mas onde estaria aquele ovo? Como seria? O que conteria? Como é que o conseguiria distinguir dos outros? Afinal eram todos ovos de chocolate… sem nada que os distinguisse assim tanto entre si…

 

Gostaria tanto de descobri-lo… mas de certeza seria um dos outros a fazê-lo… Eles eram tão mais destemidos, originais, decididos do que ela…

 

Perdida no labirinto dos seus pensamentos, e já sem grandes preocupações em encontrar ovos de chocolate, a Ana começou a vaguear pelos jardins do palacete da Tia Emília.

 

Eram jardins muito bem cuidados. E este foi um pensamento que assaltou a pequena Ana. De repente, em vez de andar à procura de ovos de chocolate, a Ana começou a apreciar cada uma das diferentes flores que ia encontrando. Existiam tantas flores diferentes das que lá estavam no ano anterior…

 

Quase sem dar por isso, entrou no labirinto de arbustos localizado bem no centro do jardim. O labirinto foi-se adensando e os caminhos foram-se tornando mais estreitos. De repente foi assolada pelo medo. Estava sozinha e as últimas vezes que lá tinha estado tinha estado sempre acompanhada! Como ia conseguir sair dali?

 

Ana recorreu à sua memória e percorreu todos os caminhos de que se recordava, sem nunca encontrar a saída!

 

Lembram-se do início da história? Estes jardins tinham um quê de mágico! As coisas, sendo sempre as mesmas, mudavam de aparência todos os anos sem que ninguém conseguisse dizer exatamente o quê ou de que forma…

 

Assustada, Ana pensou em gritar para pedir ajuda, mas pensou no que diriam e fariam os outros… De certeza que iam gozá-la por se ter perdido num jardim que conhece e frequenta há anos! Decidiu respirar fundo, muito fundo até encontrar a tranquilidade que lhe permitisse pensar em como sair dali. Nunca iria passar a vergonha de se ter perdido no Jardim da Tia Emília!

 

Agora estava mais calma. Começou a percorrer o labirinto. Agora decidira ir pelos caminhos que nunca tinha experimentado. E descobriu tantas coisas novas!

 

Aqueles eram, de facto jardins bem cuidados. Cada um dos percursos era afinal tão diferente… Nunca tinha reparado que cada um deles estava construído com arbustos subtilmente distintos entre si!

 

E eis que, depois de se ter permitido deslumbrar a cada nova descoberta, a cada novo percurso Ana estava bem no centro do labirinto e do Jardim da Tia Emília! E foi aqui que foi verdadeiramente surpreendida e gritou: “Encontrei O Ovo da tia Emília!”

 

Era um ovo gigante esculpido a partir de um arbusto muito particular… O Jardineiro da Tia Emília tinha de ser muito engenhoso… Aquele arbusto tinha sido, de certeza, enxertado! Só não sabia quantas vezes, tamanho era o número de flores de cores e formas distintas.

08 junho 2021

Metáforas aos olhos de um miúdo...

 
Ontem, ao final do dia, estava cansada, mas tão cheia de coisas boas! Coisas tão boas com origem neste exercício de criação de metáforas que me apeteceu logo partilhá-las com quem e para quem as tinha feito! Mas faltou-me a energia…
 
Hoje, quando acordei, essa boa energia continuava cá. Reli-nos. Revi mentalmente os momentos que depois aconteceram cá por casa. E aqui vai a partilha!
 
Andamos cá por casa numa espécie de campeonato de jogos de tabuleiro. O Tiago anda numa maré de ganhar ao Pedro quase que sistematicamente e desafiou-me para jogar com ele. Tinha já feito a metáfora da Ana, mas andava às voltas com a da Maria e disse-lhe: “deixa-me terminar primeiro este meu TPC”.

– Isso até tem graça! Costumas ter muitos TPCs, mãe? – perguntou o Tiago.

    
Estava tão divertida e satisfeita com o que tinha feito para a Ana que lhe disse que depois o partilharia com ele. E partilhei. Comecei por lhe perguntar se ele sabia o que era uma metáfora.
 

– Já não me lembro muito bem, mas acho que é tipo (lá está o “tipo”) uma comparação….

– Sim, na gramática de português, é uma espécie de comparação. Mas nisto que a mãe está a fazer (e ele tem uma noção geral do que é este curso da PNL e do intuito com que o estou a fazer), uma metáfora é uma espécie de uma comparação, sim, mas que é usada com o objetivo de te ajudares ou ajudares alguém a encontrar uma resposta a uma situação incomodativa ou que não se está a conseguir resolver.

– Tipo, como no outro dia quando me tentaram roubar a bicicleta e tu me contaste uma história de quando eras pequena?

 
Perante esta resposta “enchi”! E enchi mais ainda depois de lhe ter lido as metáforas que construí para as duas.
 
À tua Maria, reagiu com um sorriso malandro e diz-me:
 

– Oh mãe! Isso pareces mesmo tu! Por exemplo, quando eu deixo as minhas coisas do lanche em cima da mesa e tu avisas-me assim, como quem não quer a coisa, bem-disposta. Depois dás-me outro aviso por qualquer coisa que eu não tenha feito bem. E vais-me dando avisos, a mim e ao pai… e depois chegas à hora de jantar e já nos avisas muito maldisposta! 😊

 
À tua Ana, reagiu de uma forma tão inesperada… (Quando nos permitimos a isso, os miúdos surpreendem-nos a toda a hora!)
 
Li-lhe a tua metáfora e mais do que um comentário à mesma, conseguiu estabelecer uma ligação fora do teu contexto, de uma forma tão clara, completamente “on-target” e que a mim me tinha escapado totalmente…. 

– Está gira essa estória! Percebe-se bem! Mas sabes de quem é que parece que estás a falar? Da Matilde! (a minha sobrinha, da idade dele) Essa miúda é tão igual à Matilde! – E não é que é?

A Matilde está a passar uma fase em que a situação que queres resolver, Ana, está muito presente. Obviamente por questões distintas, mas está, de facto, a passar por aquele turbilhão de emoções tão típico da adolescência, e o seu comportamento mais comum, neste momento, é o de explosão com tudo e com todos, muitas vezes sem razão aparente.
 
Fiquei tão orgulhosa dele!
 
Obrigada meninas!

A propósito de metáforas (2)

 
Maria tinha um evento especial.
 
Não daqueles que estão marcados no calendário pra celebrar datas especificas. Era um evento pelo qual ansiava há algum tempo.
 
No armário tinha aqueles sapatos pelos quais se tinha apaixonado e aos quais não tinha resistido. Eram lindos na sua diferença. Eram a sua “cara”.
 
Com eles calçados, viu-se linda, maravilhosa, plena… mas não podia ir só de sapatos!!! Ou talvez pudesse… Quem sabe? 😊
 
Imaginou usá-los com um vestido curto, mas agora achava que talvez não fosse a melhor opção. Os sapatos, embora simples e discretos, tinham de ser “a jóia” de tão únicos que eram. Queria que brilhassem.
 
Procurou outras alternativas ao vestido curto que imaginara. Encontrou algumas opções, mas agora estava indecisa.
 
Joana, a sua amiga de sempre em quem confiava cegamente, foi chamada a opinar.
 
Joana era uma mulher segura, muito certa de si, que transpirava beleza por todos os poros, e que tinha um extremo bom gosto. Joana era uma referência.
 
Aos olhos de Joana tinha saltado um vestido comprido, leve e fluído de um azul invulgar que dizia com os olhos de Maria. Ficaria linda!
 
Insegura da decisão, Maria teve um dejá vu
 
Tinha-lhe acontecido qualquer coisa semelhante no seu baile de finalistas, pensou. Apesar de aos olhos dos outros estar simplesmente deslumbrante, como nunca a tinham visto antes, Maria não se tinha sentido na sua pele naquela noite…
 
Agradecendo imenso a Joana, decidiu levar um simples, discreto e curto vestido preto que faria brilhar os sapatos pelos quais se tinha apaixonado e que queria mostrar ao mundo.

A propósito de metáforas (1)


Já não escrevia há tanto tempo... E foi tão giro e gratificante voltar a brincar com as palavras!

 
Ela era uma miúda gira. Discreta. Calada. Raramente se expunha. Raramente partilhava.
 
O sorriso tímido que, por vezes, despontava no seu rosto como reação a qualquer coisa que a emocionava ou divertia, fazia antever um mundo que quase todos desconheciam e que, embora interdito, ansiavam por desvendar.
 
Era um mundo por vezes estranho. Um mundo que alternava entre uma luz muito própria, positiva e intensa, e um turbilhão de emoções, dúvidas, dores que ela guardava apenas para si, e que teimosamente não desvaneciam – tal qual erva daninha que invade um jardim e tudo o que o circunda.
 
Essa miúda vivia numa casa sem espelhos.
 
A imagem que tinha de si própria era apenas aquela que foi construindo com o passar dos anos. O que se dizia a si mesma é que era mais uma miúda igual a tantas outras. O que ela aprendeu através dos outros é que nem sempre é bom sermos diferentes. Talvez por isso se resguardasse…
 
Certo dia, em passeio com a irmã, descobriu uma casa repleta de espelhos. Nenhuma das duas meninas tinha alguma vez visto a sua própria imagem refletida.
 
Cada um dos espelhos, que forravam integralmente as paredes daquela casa, funcionava com distorção.
 
A miúda ficou espantada com a quantidade de gente que habitava aquela casa... O estranho é que todas aquelas pessoas a olhavam diretamente nos olhos e eram curiosamente parecidas entre si.
 
Sorriu a uma miúda que lhe pareceu simpática.
 
Gritou a uma miúda com quem se assustou de tão grande e grotesca que era.
 
Chorou de susto de uma miúda muito feia, tal qual bruxa dos contos de horror dos livros de histórias.
 
Riu, como se não houvesse amanhã, com uma outra que tinha um ar cómico e divertido…
 
Eram tantas as emoções que a assaltavam que tudo aquilo parecia um sonho bizarro do qual queria acordar.
 
E acordou! Acordou para um sonho ainda mais bizarro, quando choca, costas com costas, com a sua irmã e, de repente, o número de pessoas que habitava aquela casa duplicou… e explodiram as duas num riso nervoso, misturado com lágrimas de susto e um desconfortável conforto de terem ali alguém que conheciam e de quem gostavam.
 
Sentaram-se no chão e com calma observaram o que as rodeava. Todas aquelas miúdas estavam vestidas como elas. E, de súbito, reconheceram as mil e uma versões de si próprias… As mil e uma versões da outra…
 
De súbito, reconheceram, a par das suas diferenças, as suas proximidades…
 
Os seus medos, as suas angústias, as suas dores, tendo certamente origens distintas, eram, afinal, emoções que lhes eram comuns.
 
Os seus jardins, agora cuidados a quatro mãos, estavam mais bonitos. E as ervas que os contaminavam deixaram de crescer e de se disseminar entre si com o mesmo fulgor.”


18 julho 2010

As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas

Um dia, sem se saber muito bem porquê, tudo aconteceu de repente: as palavras cor-de-rosa desapareceram do planeta. O que são palavras cor-de-rosa? São palavras delicadas, como Obrigado, Faça favor, Se não se importa, És tão importante para mim. Palavras tão doces que são como mel no coração.

Seria obra do Mago Cinzento, que só gostava do salgado, do picante e do amargo? Não… Eram os homens que, vá lá saber-se porquê, preferiam as palavras picantes, amargas e salgadas.

Naquela época, existiam na Terra lojas de palavras cor-de-rosa e lojas de palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa vendiam Amo-te, Penso em ti, Muito Obrigado, Se faz favor… Os vendedores de palavras cinzentas vendiam sobretudo Cabeça de alho chocho, Não me chateies, Cala o bico…

A princípio, comprava-se muito mais palavras cor-de-rosa do que palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa faziam bons negócios, e um perfume doce envolvia a Terra. Os vendedores de palavras cinzentas passavam os dias à espera, porque só tinham clientes uma ou duas vezes por ano, por alturas de grandes zangas.

No entanto, um dia, os homens puseram-se estranhamente a comprar palavras cinzentas. Havia uma crise de emprego, uma greve de corações. Os patrões compravam muitos Vá pregar a outra freguesia, Está bem arranjado, homem, Obrigado pelos seus serviços mas está despedido. Havia guerras entre famílias, divórcios, casais que já não se entendiam. Invejas entre irmãos, zangas… Comprava-se vários Já não gosto de ti, Acabou tudo. Nas lojas de palavras cor-de- rosa, muitos Obrigado, Por favor, Gosto de ti, ficavam por vender.

— Para o diabo com as palavras doces — diziam os homens. — São caras e não trazem nenhum benefício.

Os vendedores de palavras cor-de-rosa, desolados, já não sabiam onde as armazenar.

As lojas cor-de-rosa fechavam umas atrás das outras. Passa-se, Fechado por morte do proprietário, Liquidação total, Quinze palavras cor-de-rosa pelo preço de uma. Mas, mesmo a preços módicos, elas não atraíam ninguém. As lojas de palavras cinzentas, essas sim, prosperavam. Porque, e isso é bem conhecido, as palavras feias são contagiosas. Se no recreio te lembrares de lançar uma, receberás dez em troca! Abriram-se mesmo lojas especializadas em palavras feias, risos grosseiros, insultos horríveis. E os vendedores cinzentos trabalhavam dia e noite para descobrirem jóias raras, as palavras mais horríveis e mais maldosas!

Como receavam ficar sem provisões, como costuma acontecer em tempo de guerra, as pessoas começaram a fazer conservas de palavras cinzentas. Congelaram-nas às dúzias, empilharam-nas nos armários da cozinha, nos guarda-fatos, debaixo das camas.

E, upa, ao menor atrito, ao mais pequeno gracejo, à mais insignificante discussão, ia-se à reserva: Cala o bico, Vai ver se chove, És um atraso de vida, Ó gordefas, e assim por adiante!

Os aniversários tinham lugar no meio dos piores insultos. Cantarolava-se Infeliz aniversário, infeliz aniversário, lançando-se uma bomba de palavras feias no meio da festa. Entre os adultos, para se festejar a passagem do ano, comia-se as passas e bebia-se sumo de peúgas pretas, no meio de gracejos do género:

Desejo-te um ano péssimo… e, principalmente, muito pouca saúde!

E, quando se abriam as prendas, era um concerto de gemidos:

Que feio! Como é que tiveste uma ideia tão má? É, de facto, o presente que eu menos queria receber!

Antes das aulas, as crianças corriam para as lojas cinzentas e enchiam os bolsos de palavras feias para a hora do recreio. Antes das férias, os adultos também lá iam, para encherem as malas de palavras cinzentas, de piadas estúpidas, que atiravam pela janela na auto- estrada, entre as sandes e o café, durante os engarrafamentos: Ó aselha, vai mas é plantar batatas!

À face da Terra, a atmosfera era glacial. O Sol, que tem medo das grosserias e dos arraiais de pancada, recusava-se agora a brilhar. Lembrava-se de outros tempos, em que era acolhido de braços abertos:

Está bom tempo! Que maravilha! Obrigado, amigo Sol… Oh, meu Deus, como gosto do Sol…

Em vez disso, ouvia-se agora:

Que calor horrível! Bolas! Kêkalôr!

Então as nuvens invadiram o céu, e a terra mergulhou num período glacial. Toda a gente tinha frio. As pessoas recusavam-se a despir-se, já não faziam festas umas às outras, já não nasciam bebés. A Terra estava tão triste, sem flores nem palavras cor-de-rosa!

No entanto, algures no mundo, um rapazinho não queria habituar-se às palavras cinzentas. Talvez por, no seu bolso, ter ficado uma palavra cor-de-rosa meio gelada. “Eu”, dizia Pedro, “não quero um mundo onde mais ninguém canta; onde não se diz bom dia, nem obrigado, onde há sempre tanto frio. Vou ver se encontro o Sol.” O rapazinho caminhou durante muito tempo, escalou colinas geladas, pequenas e grandes montanhas, vulcões extintos. Por fim, ao cabo de meses e meses de árdua caminhada, chegou exausto e transido à casa das nuvens.

— Toc, toc — bateu. — Venho à procura do Sol.

— Oh, oh! — exclamou a nuvem-chefe, que se tinha apoderado do céu cinzento. — Olhem só para isto… Um fedelho ridículo que vem à procura do senhor Sol! O Sol não aparece a ninguém! Desde que as palavras cinzentas tomaram o poder, somos nós, as nuvens pardacentas, que somos os chefes.

Dito isto, virou as costas e fechou-lhe a porta na cara.

O rapazinho sentou-se, confuso. Como responder? Não trazia no bolso uma única palavra cinzenta. Então, começou a chorar. A nuvem olhou para ele surpreendida: já há muito tempo que não via ninguém chorar! Naquele universo glacial, todos os olhos estavam gelados, todos os corações estavam frios.

— Pára com isso imediatamente! — gemeu a nuvem. — Se não, vou fazer cair um aguaceiro. (Porque as nuvens têm habitualmente a lágrima ao canto do olho.)

Finalmente comovida, tomou, lá no íntimo, a decisão de o ajudar.

— Olha — disse-lhe. — Aquela bolinha amarela ali em baixo é o Sol.

Pedro abriu os olhos e viu de facto uma bola de bilhar perdida na imensidão do azul: era o Sol, que estava a desaparecer por causa dos maus-tratos.

Já no limite das forças, o rapazinho caminhou em direcção da pequena bola amarela.

— Bom dia — cumprimentou. — Vim buscar-te. Tudo se tornou cinzento na Terra. Temos frio, sentimo-nos mal. Nunca nos rimos, nunca dizemos palavras delicadas. Tens de voltar.

E o Sol e o rapazinho começaram ambos a suspirar, pensando naquela “época cor-de-rosa”.

— Tens de voltar — insistiu Pedro.

— Vou, a título de experiência — resmungou o Sol. — Mas atira primeiro para a Terra estas palavras cor-de-rosa. Assim, o meu regresso será mais agradável.

O Sol deu ao menino um conjunto de palavras cor-de-rosa: Por favor, É simpático da tua parte, Muito obrigado, Gosto muito de ti, Amor da minha vida, Se não se importa, etc. O rapazinho meteu-as nos bolsos, na boca, no boné, nas meias, em todo o lado. Todas as que ele conseguisse levar.

Regressou à Terra e distribuiu-as ao acaso.

De repente, nos engarrafamentos, as pessoas começaram a desdobrar os papelinhos cor-de-rosa: Faz favor de passar, Que tempo tão bonito, não acha?, Pode ir à minha frente, não tenho pressa nenhuma…

Nos recreios, começaram a ouvir-se novamente risos simpáticos e palavras como És o meu melhor amigo, Claro que podes entrar no jogo…

Em casa, as crianças voltaram a usar palavras cor-de-rosa: Obrigada, mamã, Por favor, Desculpa, não fiz de propósito…

Nos aniversários, cantava-se alegremente e, nas festas da passagem do ano, formulava-se votos de felicidade e de saúde.

O Sol voltou a brilhar e a deitar-se todas as noites na sua nuvem cor-de-rosa. E, juro-te, os vendedores de palavras cor-de-rosa começaram a fazer fortuna! Abriram-se mesmo outras lojas especializadas em sorrisos, em suspiros de satisfação, em delicadeza, em cortesia, em civismo… Foi como mel no coração.

Quanto às palavras cinzentas, decidiram, diante de tanta felicidade, desarvorar com quantas patas cinzentas e peludas tinham. E, quando alguma se lembrava de vir meter o nariz, garanto-vos que não ficava por muito tempo.


http://humanizar.wordpress.com/2008/04/25/19/

19 março 2009

Olá Pai


Olá pai!

Sabes que hoje é um dia especial?
Não, pai! Hoje não é Natal!
A mãe acha que me está a nascer o meu 1º dente
Mais um sinal de que me estou a tornar gente.

Estou tão contente!

Não que não o seja,
Mas estou a ficar crescido.
Qualquer dia não há bébé que se veja,
E fraldas e biberãos serão tempo ido.

A mamã diz que o tempo passa a correr
Quase sem que se consiga perceber.
Sabes pai?!? Isso até é uma sorte!
Não tarda este dente vai cair,
E a fada com muitas prendas para mim vai vir!

Por em prendas falar, parece afinal,
Que por outro motivo que não o meu dente, o dia é especial.
A mamã diz que há algo a comemorar

Não percebi muito bem...
A Mamã diz que é o teu dia....
Existe um dia do filho também?

Não percebo muito deste mundo,
Por isso não sei se gosto mundo desta ideia...
O que sei é que lá no fundo, lá no fundo,
Gosto de ti como de geleia!

Não sei o que isso é,
Mas a mamã diz que vou gostar
Como gosto de papaia ou do meu pé,
E isso pai, é gostar até fartar.

Como compras ainda não sei fazer,
Pedi à mamã para uma prenda te comprar.
A mamã diz que o melhor do mundo é saber dar e receber,
Vamos umas aventuras partilhar?

09 outubro 2008

Adivinha O Quanto Gosto De Ti (André Sardet )

Já pensei dar-te uma flor,
Com um bilhete, mas nem sei o que escrever,
Sinto as pernas a tremer quando sorris para mim,
Quando deixo de te ver...

Vem jogar comigo um jogo, eu por ti e tu por mim.
Fecha os olhos e adivinha, quanto é que eu gosto de ti.
Gosto de ti desde aqui até à lua,
Gosto de ti, desde a Lua até aqui.
Gosto de ti, simplesmente porque gosto,
E é tão bom viver assim...

Ando a ver se me decido,
Como te vou dizer,
Como heide de contar,
Até já fiz um avião com um papel azul,
Mas voou da minha mão...

Vem jogar comigo um jogo, eu por ti e tu por mim.
Fecha os olhos e adivinha, quanto é que eu gosto de ti.
Gosto de ti desde aqui até à lua,
Gosto de ti, desde a Lua até aqui.
Gosto de ti, simplesmente porque gosto,
E é tão bom viver assim...

Quantas vezes parei à tua porta?
Quantas vezes nem olhaste para mim?
Quantas vezes eu pedi que adivinhasses,
Quanto é que eu gosto de ti?

Gosto de ti desde aqui até à lua,
Gosto de ti, desde a Lua até aqui.
Gosto de ti, simplesmente porque gosto,
E é tão bom viver assim...

28 maio 2008

14 maio 2008

20 março 2008

Parabéns Papá!



Pois é papá,
Consta que achas que sou um pouco envergonhado
Mas não é por mal,
Ainda não estou muito habituado
A que me façam festinhas, etc. e tal.

Já sei que vais dizer que isso não é verdade,
Que a mamã outra coisa não sabe fazer.
Mas sabes papá, ela foi na realidade
A primeira que se deu a conhecer.

Ela faz-me muitas festinhas
E conta-me muitas histórinhas.
Sabes uma coisa que me disse?
Que hoje é um dia especial…
Mas não, não penses que é Natal!

Das muitas coisas que a me contou mamã,
Foi a história da minha prima Marta…
Que quando era pequenina, foi esperta que se farta!
Como ainda não sabia falar, pediu-lhe que a ajudasse
Para que melhor se expressasse.

Disse então a Marta ao tio Ricardo e à tia Tita,
Que a mamã tinha sonhos loucos,
E que isso aproveitava para lhes ir falando aos poucos.

Ao contrário da minha prima, não preciso dos sonhos da mamã
Para te dizer que tenho o melhor pai do mundo,
Ontem, hoje, amanhã....
Sempre e a acima de tudo!

Mas disse-me a mamã, que para o dia comemorar,
E que para sempre o pudéssemos lembrar,
Não bastava dizer-te que, uma das minhas poucas certezas, é a de muito te amar…
Uma prenda tínhamos de te dar!

Mas sabes papá, isto de te comprar prendas, é uma complicação!
E tinha de ser uma coisa de coração…
A mamã pensou, pensou…. Mas até ela teve dificuldade,
E eu o mundo, ainda mal o conheço ... É a pura da verdade!

Primeiro pensámos que um charuto fumar
Seria uma boa forma de comemorar!
Mas isso não seria um bom exemplo a dar....
Deveria ser uma coisa que pudessemos os dois partilhar!

Lembrámo-nos depois então, que para melhor te conhecer,
Nada melhor que andarmos os dois muito juntinhos!
Não é para já, mas está perto de acontecer…
E vais ver… Vai ser tão bom ficarmos assim apertadinhos!

Desejo-te então um dia muito feliz!
Eu! O Tiago! O teu petiz!

22 outubro 2007

Sete Sapatos Sujos (Mia Couto)

Começo pela confissão de um sentimento conflituoso: é um prazer e uma honra ter recebido este convite e estar aqui convosco. Mas, ao mesmo tempo, não sei lidar com este nome pomposo: “oração de sapiência”. De propósito, escolhi um tema sobre o qual tenho apenas algumas, mal contidas, ignorâncias. Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos nós, de modo generoso e patriótico, queremos participar nessa batalha. Existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nós pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho.

Falarei aqui na minha qualidade de escritor tendo escolhido um terreno que é a nossa interioridade, um território em que somos todos amadores. Neste domínio ninguém tem licenciatura, nem pode ter a ousadia de proferir orações de “sapiência”. O único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de partilhar publicamente as nossas fragilidades. É isso que venho fazer, partilhar convosco algumas das minhas dúvidas, das minhas solitárias cogitações.

Começo por um fait-divers. Há agora um anúncio nas nossas estações de rádio em que alguém pergunta à vizinha: diga-me minha senhora, o que é que se passa em sua casa, o seu filho é chefe de turma, as suas filhas casaram muito bem, o seu marido foi nomeado director, diga-me, querida vizinha, qual é o segredo? E a senhora responde: é que lá em casa nós comemos arroz marca…(não digo a marca porque não me pagaram este momento publicitário).

Seria bom que assim que fosse, que a nossa vida mudasse só por consumirmos um produto alimentar. Já estou a ver o nosso Magnifico Reitor a distribuir o mágico arroz e a abrirem-se no ISCTEM as portas para o sucesso e para a felicidade. Mas ser- se feliz é, infelizmente, muito mais trabalhoso.

No dia em que eu fiz 11 anos de idade, a 5 de Julho de 1966, o Presidente Kenneth Kaunda veio aos microfones da Rádio de Lusaka para anunciar que um dos grandes pilares da felicidade do seu povo tinha sido construído. Não falava de nenhuma marca de arroz. Ele agradecia ao povo da Zâmbia pelo seu envolvimento na criação da primeira universidade no país. Uns meses antes, Kaunda tinha lançado um apelo para que cada zambiano contribuísse para construir a Universidade. A resposta foi comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao apelo. Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado, funcionários deram dinheiro. Um país de gente analfabeta juntou-se para criar aquilo que imaginavam ser uma página nova na sua história. A mensagem dos camponeses na inauguração da Universidade dizia: nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os nossos netos deixarão de passar fome.

Quarenta anos depois, os netos dos camponeses zambianos continuam sofrendo de fome. Na realidade, os zambianos vivem hoje pior do que viviam naquela altura. Na década de 60, a Zâmbia beneficiava de um Produto Nacional Bruto comparável aos de Singapura e da Malásia. Hoje, nem de perto nem de longe, se pode comparar o nosso vizinho com aqueles dois países da Ásia.

Algumas nações africanas podem justificar a permanência da miséria porque sofreram guerras. Mas a Zâmbia nunca teve guerra. Alguns países podem argumentar que não possuem recursos. Todavia, a Zâmbia é uma nação com poderosos recursos minerais. De quem é a culpa deste frustrar de expectativas? Quem falhou? Foi a Universidade? Foi a sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? E porque razão Singapura e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?

Falei da Zâmbia como um país africano ao acaso. Infelizmente, não faltariam outros exemplos. O nosso continente está repleto de casos idênticos, de marchas falhadas, esperanças frustradas. Generalizou-se entre nós a descrença na possibilidade de mudarmos os destinos do nosso continente. Vale a pena perguntarmo-nos: o que está acontecer? O que é preciso mudar dentro e fora de África?

Estas perguntas são sérias. Não podemos iludir as respostas, nem continuar a atirar poeira para ocultar responsabilidades. Não podemos aceitar que elas sejam apenas preocupação dos governos.

Felizmente, estamos vivendo em Moçambique uma situação particular, com diferenças bem sensíveis. Temos que reconhecer e ter orgulho que o nosso percurso foi bem distinto. Acabamos recentemente de presenciar uma dessas diferenças. Desde 1957, apenas seis entre 153 chefes de estado africanos renunciaram voluntariamente ao poder. Joaquim Chissano é o sétimo desses presidentes. Parece um detalhe mas é bem indicativo que o processo moçambicano se guiou por outras lógicas bem diversas.

Contudo, as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos só serão definitivas quando se converterem em cultura de cada um de nós. E esse é ainda um caminho de gerações. Entretanto, pesam sobre Moçambique ameaças que são comuns a todo o continente. A fome, a miséria, as doenças, tudo isso nós partilhamos com o resto de África. Os números são aterradores: 90 milhões de africanos morrerão com SIDA nos próximos 20 anos. Para esse trágico número, Moçambique terá contribuído com cerca de 3 milhões de mortos. A maior parte destes condenados são jovens e representam exactamente a alavanca com que poderíamos remover o peso da miséria. Quer dizer, África não está só perdendo o seu próprio presente: está perdendo o chão onde nasceria um outro amanhã.

Ter futuro custa muito dinheiro. Mas é muito mais caro só ter passado. Antes da Independência, para os camponeses zambianos não havia futuro. Hoje o único tempo que para eles existe é o futuro dos outros.

Os desafios são maiores que esperança? Mas nós não podemos senão ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo é um luxo para os ricos.

A pergunta crucial é esta: o que é que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim, há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores de futuro.

Falo de uma nova atitude mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela compõe um conjunto vasto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos. Há muito que venho defendendo que o maior factor de atraso em Moçambique não se localiza na economia mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Um pensamento que não resulte da repetição de lugares comuns, de fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros.

Às vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em nós pensarmos como sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História.

Estamos todos nós estreando um combate interno para domesticar os nosso antigos fantasmas. Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinah que escolher e sete é um número mágico.

O primeiro sapato: a ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas

Nós já conhecemos este discurso. A culpa já foi da guerra, do colonialismo, do imperialismo, do apartheid, enfim, de tudo e de todos. Menos nossa. É verdade que os outros tiveram a sua dose de culpa no nosso sofrimento. Mas parte da responsabilidade sempre morou dentro de casa.

Estamos sendo vítimas de um longo processo de desresponsabilização. Esta lavagem de mãos tem sido estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na impunidade. Os culpados estão à partida encontrados: são os outros, os da outra etnia, os da outra raça, os da outra geografia.

Há um tempo atrás fui sacudido por um livro intitulado Capitalist Nigger: The Road to Success de um nigeriano chamado Chika A. Onyeani. Reproduzi num jornal nosso um texto desse economista que é um apelo veemente para que os africanos renovem o olhar que mantém sobre si mesmos. Permitam-me que leia aqui um excerto dessa carta.
Caros irmãos: Estou completamente cansado de pessoas que só pensam numa coisa: queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos mentalmente como vítimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos. Queixamo-nos até à náusea sobre o que os outros nos fizeram e continuam a fazer. E pensamos que o mundo nos deve qualquer coisa. Lamento dizer-vos que isto não passa de uma ilusão. Ninguém nos deve nada. Ninguém está disposto a abdicar daquilo que tem, com a justificação que nós também queremos o mesmo. Se quisermos algo temos que o saber conquistar. Não podemos continuar a mendigar, meus irmãos e minhas irmãs.
40 anos depois da Independência continuamos a culpar os patrões coloniais por tudo o que acontece na África dos nossos dias. Os nossos dirigentes nem sempre são suficientemente honestos para aceitar a sua responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos os europeus de roubar e pilhar os recursos naturais de África. Mas eu pergunto-vos: digam-me, quem está a convidar os europeus para assim procederem, não somos nós? (fim da citação)

Queremos que outros nos olhem com dignidade e sem paternalismo. Mas ao mesmo tempo continuamos olhando para nós mesmos com benevolência complacente: Somos peritos na criação do discurso desculpabilizante. E dizemos:
· Que alguém rouba porque, coitado, é pobre (esquecendo que há milhares de outros pobres que não roubam)
· Que o funcionário ou o polícia são corruptos porque, coitados, tem um salário insuficiente (esquecendo que ninguém, neste mundo, tem salário suficiente)
· Que o político abusou do poder porque, coitado, na tal África profunda, essas praticas são antropologicamente legitimas

A desresponsabilização é um dos estigmas mais graves que pesa sobre nós, africanos de Norte a Sul. Há os que dizem que se trata de uma herança da escravatura, desse tempo em que não se era dono de si mesmo. O patrão, muitas vezes longínquo e invisível, era responsável pelo nosso destino. Ou pela ausência de destino.

Hoje, nem sequer simbolicamente, matamos o antigo patrão. Uma das formas de tratamento que mais rapidamente emergiu de há uns dez anos para cá foi a palavra “patrão”. Foi como se nunca tivesse realmente morrido, como se espreitasse uma oportunidade histórica para se relançar no nosso quotidiano. Pode-se culpar alguém desse ressurgimento? Não. Mas nós estamos criando uma sociedade que produz desigualdades e que reproduz relações de poder que acreditávamos estarem já enterradas.


Segundo sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho

Ainda hoje despertei com a notícia que refere que um presidente africano vai mandar exorcizar o seu palácio de 300 quartos porque ele escuta ruídos “estranhos” durante a noite. O palácio é tão desproporcionado para a riqueza do país que demorou 20 anos a ser terminado. As insónias do presidente poderão nascer não de maus espíritos mas de uma certa má consciência.

O episódio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda explicamos os fenómenos positivos e negativos. O que explica a desgraça mora junto do que justifica a bem-aventurança. A equipe desportiva ganha, a obra de arte é premiada, a empresa tem lucros, o funcionário foi promovido? Tudo isso se deve a quê? A primeira resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se à boa sorte. E a palavra “boa sorte” quer dizer duas coisas: a protecção dos antepassados mortos e protecção dos padrinhos vivos.

Nunca ou quase nunca se vê o êxito como resultado do esforço, do trabalho como um investimento a longo prazo. As causas do que nos sucede (de bom ou mau) são atribuídas a forças invisíveis que comandam o destino. Para alguns esta visão causal é tida como tão intrinsecamente “africana” que perderíamos “identidade” se dela abdicássemos. Os debates sobre as “autenticas” identidades são sempre escorregadios. Vale a pena debatermos, sim, se não poderemos reforçar uma visão mais produtiva e que aponte para uma atitude mais activa e interventiva sobre o curso da História.

Infelizmente olhamo-nos mais como consumidores do que produtores. A ideia de que África pode produzir arte, ciência e pensamento é estranha mesmo para muitos africanos. Ate aqui o continente produziu recursos naturais e força laboral.

Produziu futebolistas, dançarinos, escultores. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no domínio daquilo eu se entende como natureza”. Mas já poucos aceitarão que os africanos possam ser produtores de ideias, de ética e de modernidade. Não é preciso que os outros desacreditem. Nós próprios nos encarregamos dessa descrença.

O ditado diz. “o cabrito come onde está amarrado”. Todos conhecemos o lamentável uso deste aforismo e como ele fundamenta a acção de gente que tira partido das situações e dos lugares. Já é triste que nos equiparemos a um cabrito. Mas também é sintomático que, nestes provérbios de conveniência nunca nos identificamos como os animais produtores, como é por exemplo a formiga. Imaginemos que o ditado muda e passar a ser assim: “Cabrito produz onde está amarrado.” Eu aposto que, nesse caso, ninguém mais queria ser cabrito.

Terceiro sapato- O preconceito de quem critica é um inimigo

Muitas acreditam que, com o fim do monopartidarismo, terminaria a intolerância para com os que pensavam diferente. Mas a intolerância não é apenas fruto de regimes. É fruto de culturas, é o resultado da História. Herdamos da sociedade rural uma noção de lealdade que é demasiado paroquial. Esse desencorajar do espírito crítico é ainda mais grave quando se trata da juventude. O universo rural é fundado na autoridade da idade. Aquele que é jovem, aquele que não casou nem teve filhos, esse não tem direitos, não tem voz nem visibilidade. A mesma marginalização pesa sobre a mulher.

Toda essa herança não ajuda a que se crie uma cultura de discussão frontal e aberta. Muito do debate de ideias é, assim, substituído pela agressão pessoal. Basta diabolizar quem pensa de modo diverso. Existe uma variedade de demónios à disposição: uma cor política, uma cor de alma, uma cor de pele, uma origem social ou religiosa diversa.

Há neste domínio um componente histórico recente que devemos considerar: Moçambique nasceu da luta de guerrilha. Essa herança deu-nos um sentido épico da história e um profundo orgulho no modo como a independência foi conquistada. Mas a luta armada de libertação nacional também cedeu, por inércia, a ideia de que o povo era uma espécie de exército e podia ser comandado por via de disciplina militar. Nos anos pós-independência, todos éramos militantes, todos tínhamos uma só causa, a nossa alma inteira vergava-se em continência na presença dos chefes. E havia tantos chefes. Essa herança não ajudou a que nascesse uma capacidade de insubordinação positiva.

Faço-vos agora uma confidência. No início da década de 80 fiz parte de um grupo de escritores e músicos a quem foi dada a incumbência de produzir um novo Hino Nacional e um novo Hino para o Partido Frelimo. A forma como recebemos a tarefa era indicadora dessa disciplina: recebemos a missão, fomos requisitados aos nossos serviços, e a mando do Presidente Samora Machel fomos fechados numa residência na Matola, tendo-nos sido dito: só saem daí quando tiverem feito os hinos. Esta relação entre o poder e os artistas só é pensável num dado quadro histórico. O que é certo é que nós aceitámos com dignidade essa incumbência, essa tarefa surgia como uma honra e um dever patriótico. E realmente lá nos comportamos mais ou menos bem. Era um momento de grandes dificuldades …e as tentações eram muitas. Nessa residência na Matola havia comida, empregados, piscina… num momento em que tudo isso faltava na cidade. Nos primeiros dias, confesso nós estávamos fascinados com tanta mordomia e ficávamos preguiçando e só corríamos para o piano quando ouvíamos as sirenes dos chefes que chegavam. Esse sentimento de desobediência adolescente era o nosso modo de exercermos uma pequena vingança contra essa disciplina de regimento.

Na letra de um dos hinos lá estava reflectida essa tendência militarizada, essa aproximação metafórica a que já fiz referência:

Somos soldados do povo
Marchando em frente

Tudo isto tem que ser olhado no seu contexto sem ressentimento. Afinal, foi assim, que nasceu a Pátria Amada, este hino que nos canta como um só povo, unido por um sonho comum.


Quarto sapato: a ideia que mudar as palavras muda a realidade

Uma vez em Nova Iorque um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente incorrectos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc…

Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer “negro” ou “preto”. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé.

Há toda uma geração que está aprendendo uma língua – a língua dos workshops. É uma língua simples uma espécie de crioulo a meio caminho entre o inglês e o português. Na realidade, não é uma língua mas um vocabulário de pacotilha. Basta saber agitar umas tantas palavras da moda para falarmos como os outros isto é, para não dizermos nada. Recomendo-vos fortemente uns tantos termos como, por exemplo:

- desenvolvimento sustentável
- awarenesses ou accountability
- boa governação
- parcerias sejam elas inteligentes ou não
- comunidades locais

Estes ingredientes devem ser usados de preferência num formato “powerpoint. Outro segredo para fazer boa figura nos workshops é fazer uso de umas tantas siglas. Porque um workshopista de categoria domina esses códigos. Cito aqui uma possível frase de um possível relatório: Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD da UA e ao PARPA do GOM. Para bom entendedor meia sigla basta.

Sou de um tempo em que o que éramos era medido pelo que fazíamos. Hoje o que somos é medido pelo espectáculo que fazemos de nós mesmos, pelo modo como nos colocamos na montra. O CV, o cartão de visitas cheio de requintes e títulos, a bibliografia de publicações que quase ninguém leu, tudo isso parece sugerir uma coisa: a aparência passou a valer mais do que a capacidade para fazermos coisas.

Muitas das instituições que deviam produzir ideias estão hoje produzindo papéis, atafulhando prateleiras de relatórios condenados a serem arquivo morto. Em lugar de soluções encontram-se problemas. Em lugar de acções sugerem-se novos estudos.


Quinto sapato A vergonha de ser pobre e o culto das aparências

A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.

Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.

Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. “Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatível”. O termo é curioso: “compatível”.

Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.

Esta doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.

É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos.

A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.

Sexto Sapato A passividade perante a injustiça

Estarmos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os outros. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de injustiça, áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me em particular à:

- violência domestica (40 por cento dos crimes resultam de agressão domestica contra mulheres, esse é um crime invisível)
- violência contra as viúvas
- à forma aviltante como são tratados muitos dos trabalhadores
- aos maus tratos infligidos às crianças

Ainda há dias ficamos escandalizados com o recente anúncio que privilegiava candidatos de raça branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente correcto. Contudo, existem convites à discriminação que são tão ou mais graves e que aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.

Tomemos esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de forma correcta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu não sei se todos estão a par de qual é a tiragem do jornal Notícias. São 13 mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada jornal é lido por 5 pessoas, temos que o numero de leitores é menor que a população de um bairro de Maputo. É dentro deste universo que circulam convites e os acessos a oportunidades. Falei na tiragem mas deixei de lado o problema da circulação. Por que geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto de Moçambique é deixado de fora ?

É verdade que esta discriminação não é comparável à do anúncio racista porque não é não resultado de acção explícita e consciente. Mas os efeitos de discriminação e exclusão destas práticas sociais devem ser pensados e não podem cair no saco da normalidade. Esse “bairro” das 60 000 pessoas é hoje uma nação dentro da nação, uma nação que chega primeiro, que troca entre si favores, que vive em português e dorme na almofada na escrita.

Um outro exemplo. Estamos administrando anti-retro-virais a cerca de 30 mil doentes com SIDA. Esse número poderá, nos próximos anos, chegar aos 50 000. Isso significa que cerca de um milhão quatrocentos e cinquenta mil doentes ficam excluídos de tratamento. Trata-se de uma decisão com implicações éticas terríveis. Como e quem decide quem fica de fora? É aceitável, pergunto, que a vida de um milhão e meio de cidadãos esteja nas mãos de um pequeno grupo técnico?


Sétimo sapato - A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros

Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa mágica chamada televisão. Criam uma relação de virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar vivendo fora, dançando nos braços de Janet Jackson. O que os vídeos e toda a sub-indústria televisiva nos vem dizer não é apenas “comprem”. Há todo um outro convite que é este: “sejam como nós”. Este apelo à imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha em sermos quem somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.

O resultado é que a produção cultural nossa se está convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa música poderá ser uma espécie de hip-hop tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o Mac Donald’s.

Falamos da erosão dos solos, da deflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante. A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua portuguesa) e a ideia que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos.

O nosso corpo social tem a uma história similar a de um indivíduo. Somos marcados por rituais de transição: o nascimento, o casamento, o fim da adolescência, o fim da vida.

Eu olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser diferentes ? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial. Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimónias de final do curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais enraizada na terra e na tradição moçambicanas.

Falei da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo inteiro na modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos também construtores.

A minha mensagem é simples: mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas de caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o mapa dos outros não ajuda. Necessitamos de inventar os nossos próprios pontos cardeais. Interessa-nos um passado que não esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha desenhado como um receita financeira.

A Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania activa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia construtiva. Não podemos treinar jovens profissionais de sucesso num oceano de miséria. A Universidade não pode aceitar ser reprodutor da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com aquilo que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse pensamento não se encomenda, não nasce sozinho. Nasce do debate, da pesquisa inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor está surgindo em África e no mundo.

A questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa condição ambígua, dançando entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação) e uma condição maligna, um ninho de riscos e preocupações (a SIDA, a droga, o desemprego).

Não foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que o naufrago vê num barco salva-vidas. Nós também depositamos os nossos sonhos nessa conta.

Numa sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um já idoso nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que já muitos sabíamos. Ele confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos 60, fugiam para a FRELIMO não eram apenas motivados por dedicação a uma causa independentista. Eles arriscaram-se e saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O fascínio pela educação como um passaporte para uma vida melhor estava presente um universo em que quase ninguém podia estudar. Essa restrição era comum a toda a África. Até 1940 o número de africanos que frequentavam escolas secundárias não chegava a 11 000. Hoje, a situação melhorou e esse número foi multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente investiu na criação de novas capacidades. E esse investimento produziu, sem dúvida, resultados importantes.

Aos poucos se torna claro, porém, que mais quadros técnicos não resolvem, só por si, a miséria de uma nação. Se um país não possuir estratégias viradas para a produção de soluções profundas então todo esse investimento não produzirá a desejada diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem viradas para o enriquecimento rápido de uma pequena elite então de pouco valerá termos mais quadros técnicos.

A escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois, nos ensina a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida resta-nos ser verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós também não sabemos e que, nós, professores e pais, também estamos à procura de respostas.

Com o novo governo ressurgiu o combate pela auto-estima. Isso é correcto e é oportuno. Temos que gostar de nós mesmos, temos que acreditar nas nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode ser fundado numa vaidade vazia, numa espécie de narcisismo fútil e sem fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na visitação do passado. É verdade que é preciso sentir que temos raízes e que essas raízes nos honram. Mas a auto-estima não pode ser construída apenas de materiais do passado.

Na realidade, só existe um modo de nos valorizar: é pelo trabalho, pela obra que formos capazes de fazer. É preciso que saibamos aceitar esta condição sem complexos e sem vergonha: somos pobres. Ou melhor, fomos empobrecidos pela História. Mas nós fizemos parte dessa História, fomos também empobrecidos por nós próprios. A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora também dentro de nós.

Mas a força de superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós. Saberemos como já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os setes mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a verdade é uma: antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros.

Oração de Sapiência na abertura do ano lectivo no ISCTEM

24 setembro 2007

Encosta-te a mim (Jorge Palma)

Encosta-te a mim,
nós já vivemos cem mil anos
encosta-te a mim,
talvez eu esteja a exagerar
encosta-te a mim,
dá cabo dos teus desenganos
não queiras ver quem eu não sou,
deixa-me chegar.
Chegado da guerra,
fiz tudo p´ra sobreviver em nome da terra,
no fundo p´ra te merecerrecebe-me bem,
não desencantes os meus passos
faz de mim o teu herói,
não quero adormecer.
Tudo o que eu vi,
estou a partilhar contigo
o que não vivi, hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim.
Encosta-te a mim,
desatinamos tantas vezes
vizinha de mim, deixa ser meu o teu quintal
recebe esta pomba que não está armadilhada
foi comprada, foi roubada, seja como for.
Eu venho do nada porque arrasei o que não quis
em nome da estrada onde só quero ser feliz
enrosca-te a mim, vai desarmar a flor queimada
vai beijar o homem-bomba, quero adormecer.
Tudo o que eu vi,
estou a partilhar contigo o que não vivi,
um dia hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim.

31 julho 2007

O nosso bom português...

Redacção feita por uma aluna de Letras, que obteve a vitória num concurso interno promovido pelo professor da cadeira de Gramática Portuguesa.

“Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador.

Um substantivo masculino, com aspecto plural e alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. O artigo, era bem definido, feminino, singular. Ela era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal. Era ingénua, silábica, um pouco átona, um pouco ao contrário dele, que era um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanático por leituras e filmes ortográficos.

O substantivo até gostou daquela situação; os dois, sozinhos, naquele lugar sem ninguém a ver nem ouvir. E sem perder a oportunidade, começou a insinuar-se, a perguntar, conversar. O artigo feminino deixou as reticências de lado e permitiu-lhe esse pequeno índice.

De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro.

Óptimo, pensou o substantivo; mais um bom motivo para provocar alguns sinónimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeçou a movimentar-se. Só que em vez de descer, sobe e pára exactamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela no seu aposento.Ligou o fonema e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, suave e relaxante. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela.

Ficaram a conversar, sentados num vocativo, quando ele recomeçou a insinuar-se. Ela foi deixando, ele foi usando o seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo.

Todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo directo.

Começaram a aproximar-se, ela tremendo de vocabulário e ele sentindo o seu ditongo crescente. Abraçaram-se, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples, passaria entre os dois.

Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula.

Ele não perdeu o ritmo e sugeriu-lhe que ela lhe soletrasse no seu apóstrofo. É claro que ela se deixou levar por essas palavras, pois estava totalmente oxítona às vontades dele e foram para o comum de dois géneros.

Ela, totalmente voz passiva. Ele, completamente voz activa. Entre beijos, carícias, parónimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais.

Ficaram uns minutos nessa próclise e ele, com todo o seu predicativo do objecto, tomava a iniciativa. Estavam assim, na posição de primeira e segunda pessoas do singular.

Ela era um perfeito agente da passiva; ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.

Nisto a porta abriu-se repentinamente.

Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo e entrou logo a dar conjunções e adjectivos aos dois, os quais se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas.

Mas, ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tónica, ou melhor, subtónica, o verbo auxiliar logo diminuiu os seus advérbios e declarou a sua vontade de se tornar particípio na história. Os dois olharam-se; e viram que isso era preferível, a uma metáfora por todo o edifício.

Que loucura, meu Deus!

Aquilo não era nem comparativo. Era um superlativo absoluto. Foi-se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado aos seus objectos. Foi-se chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo e propondo claramente uma mesóclise-a-trois.

Só que, as condições eram estas:

Enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria no gerúndio do substantivo e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.O substantivo, vendo que poderia transformar-se num artigo indefinido depois dessa situação e pensando no seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história. Agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, atirou-o pela janela e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.”

Fernanda Braga da Cruz

08 maio 2007

Ser Feliz ou Ter Razão?

Oito da noite numa avenida movimentada. O casal já está atrasado para jantar em casa de uns amigos.

A morada é nova, bem como o caminho que ela consultou no mapa antes de sair.

Ele conduz o carro.

Ela orienta e pede para que vire, na próxima rua, à esquerda. Ele tem certeza de que é à direita.

Discutem.

Percebendo que além de atrasados, poderão ficar mal-humorados, ela deixa que ele decida. Ele vira à direita e percebe, então, que estava errado.

Embora com dificuldade, admite que insistiu no caminho errado, enquanto faz o retorno. Ela sorri e diz que não há nenhum problema se chegarem alguns minutos atrasados. Mas ele ainda quer saber:
  • Se tinhas tanta certeza de que eu estava a ir pelo caminho errado, devias ter insistido um pouco mais....

E ela diz:

  • Entre ter razão e ser feliz, prefiro ser feliz. Estávamos à beira de uma discussão, se eu insistisse mais, teríamos estragado a noite!

03 maio 2007

Às voltas com a palavra...

SONHO para umas rimas fazer....
Mais complicado do que alguém outrora quisera crer!

Ser...
Ouvir para perceber,
Nunca desistir ou
Hesitar
Outros mundos estão ainda por descobrir...

Assim é Carolina... como te dizia outro dia...
Inspiração por encomenda, não vem não!
É muitas vezes fugidia...
Mas eis que horas em minutos se transformam, num enorme turbilhão!

26 abril 2007

Dizem que...


... Quem sai aos seus não degenera...
Às vezes quem dera!
Diz a avó:
"Lá andas tu outra vez, Marta, a fazer das tuas!
Vê lá, não vás ver estrelas e luas!"


Ilustração: Irisz Agocs